A arte faz de conta. Crianças,
artistas fazem
de conta que um rabisco,
um objeto, um fragmento, um pensamento se transformam em outra coisa. Desenhar, brincar, poetar. Manchar, riscar, construir, se encantar. Transformar retalhos de tecidos
em uma fantasia surreal,
rabiscos em dragão alado, pensamentos em formas. Buscar o
dizível no invisível. Modos singulares de ver, sentir, expressar e reinventar o mundo.
Laryssa_m (Lary) ensinando Anna a desenhar. (Laryssa Albuquerque Martins é Artista Plástica formada pela UnB em Artes Visuais) |
Tanto crianças quanto aqueles
adultos que persistem em deslocar a ordem estabelecida do mundo compartilham um pensamento similar,
no sentido de que ambos propõem simulacros ou fingem que uma coisa é outra. Artistas
e crianças percebem
o mundo e dão sentido
a ele através de formas
singulares. Utilizam seus sentidos de modo
mais aguçado do que a maioria dos adultos que deixaram para trás essa capacidade
humana de ver, imaginar
e simbolizar.
Por muitos
motivos e em um determinado período da infância
(mais ou menos por volta dos seis ou sete anos), a maioria das pessoas abandona
seus infindáveis processos de elaborar
enunciados poéticos. Por outros motivos,
alguns adultos persistem
em suas buscas de alterar os sentidos das coisas, insistindo em transformar o ordinário em extraordinário, o vulgar em diferente. Aqueles
que persistem em nos provocar
com suas produções, sejam
elas as mais tradicionais, como a pintura
e o desenho, sejam as performances e as instalações, são denominados, na sociedade ocidental, de artistas. Estes brincam com o cotidiano, com a história, com os mitos
e com os nossos pensamentos. Reconstroem significados em torno do já visto
e do supostamente sabido.
De muitos modos,
os artistas, através
de suas produções, anteciparam os saberes
das ciências, como o Futurismo (1909), por exemplo, que vislumbrou a Lei da Relatividade, de Albert
Einstein. Ou expressaram dores e massacres da humanidade, como Guernica (1937), de Picasso, e a instalação 111 (1992), de Nuno Ramos. Ou visualizaram os principais fundamentos de pensadores, como fez Gustav Klimt (1862-1918), ao “traduzir” a sensualidade das mulheres na teoria de Sigmund Freud (1856-1939). Enfim, artistas e suas produções formulam
conhecimentos sobre o mundo, conhecimentos e saberes que só podem ser ditos e propagados por meio das linguagens não verbais.
A grande
questão que se coloca é: se todos
nós estruturamos, nos
anos iniciais de nossas vidas, o pensamento simbólico-poético, similar ao dos artistas, então por que a
maioria das pessoas
desiste de transformar a obviedade do cotidiano? Entendemos que são muitos os fatores sociais, culturais e econômicos – que estancam as possibilidades de ressignificar o que está aí no mundo
e singularizar ações,
pensamentos e modos de ser.
Em um contexto cultural
mais amplo, podemos
pensar o quanto as produções culturais imagéticas que circulam nos mais variados
meios modulam nossos modos de ser e de pensar.
Imagens que produzem
pontos de vista
sobre o mundo
e ao mesmo tempo anestesiam nossos
sentidos em relação
ao “diferente”, ao estranho, ao inusitado. As imagens disponibilizadas cotidianamente pelos meios
de comunicação e pelas
corporações
de entretenimento acabam se tornando
as principais referências para que as crianças
elaborem seus imaginários e construam suas imagens, tendo
em vista que outros repertórios visuais, como
os das artes
visuais e de outras produções culturais, não participam frequentemente de suas vidas.
Limitar o acesso
das crianças a apenas
determinado estilo e ponto de vista cultural reflete e diz de uma prática
pedagógica, de uma concepção de criança e do que pensam seus educadores sobre arte na Educação Infantil.
Em um contexto
mais específico da educação formal,
da Educação Infantil
ao Ensino Superior,
na maioria das
vezes, o ensino de arte e também de outras áreas
do conhecimento, em lugar de promover ações
pedagógicas que levem
crianças e adultos
ao universo da criação e da estruturação da linguagem visual,
acaba tolhendo os modos singulares de os alunos entenderem e expressarem suas leituras e relações com o mundo. Assim,
em diferentes contextos socioculturais e nas
salas de aula,
a sensibilidade e as formas expressivas estão escoando, fugindo
de nossas vidas, sem que possamos exercitar
nossos processos sensíveis e criativos. Por que isso acontece na Educação Infantil?
(Susana Rangel Vieira
da Cunha e Camila Bettim Borges. A arte é para crianças ou das crianças? Problematizando as questões da arte na educação infantil)
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